A você, Mulher Negra
Nem sei como iniciar este meu contato com você…
Vou começar pela forma mais sincera e humilde que consigo encontrar neste momento:
Peço-lhe as minhas desculpas, Minha Rainha
Tenho estado tão afastado de mim, um homem preto do século 21, que caí nas armadilhas que me fizerem ignorar e menosprezar a sua presença.
Desde que nós dois aqui desembarcamos, sequestrados que fomos, lá, do outro lado do “Grande Rio”, houveram mais condições e eventos que me fizeram desconsiderar e até mesmo negar o seu real valor, do que dignificá-la e exaltá-la, como os nossos antepassados já o faziam, antes que o flagelo da escravização se abatesse sobre nós.
Trazidos pra cá, todas as condições de vida que tanto eu quanto você (e você, principalmente), às quais fomos nós dois submetidos, conspiraram pra que o meu olhar sobre você fosse contaminado, desde que pela primeira vez vimos o sol do Brasil, ao sairmos dos porões fétidos dos navios tumbeiros vindos da África, nossa outrora Terra Mãe.
Saímos de lá, Deusa de minhas tradições, pra nunca mais voltar…
Forçado que fui a sobreviver em uma nova ordem social (bem distinta e conflitante com as nossas tradições culturais de tempos infindos e terras distantes), eu homem preto, fui massacrado em minha forma de entender a mim e ao mundo, e também na forma de me relacionar com você, minha parceira milenar, em um contexto opressivo e massacrante que era (e ainda é!) sustentado pela violência sistemática, a opressão contínua, a ameaça implacável, a violação de laços familiares e a infusão de valores doutrinários exógenos à minha percepção de mundo original.
Fatinha do Jongo (Foto – Jabuti Filmes)
E também ao mimetismo generalizado imposto ao meu corpo e (principalmente!) à minha alma, o qual me expõe e me torna “disponível” às mulheres de grupos étnicos diferentes do meu… e esse mergulhomodela o meu pensar, o meu falar e as minhas atitudes, de tal forma sou acuado a “adaptar para ser aceito” em círculos de convivência alheios às minhas origens, à minha herança cultural e ao meu legado histórico.
Não vi, ou fingi não ver, a sua dor e a sua solidão, Rainha de minha história. Fui falho, indiferente e injusto com a sua luta e também com a sua demonstração diária de resistência. Sei que a minha ausência nos seus momentos de isolamento e angústia intensificaram ainda mais as suas lágrimas, fossem elas expostas à luz do sol, ou vertidas na escuridão de suas noites solitárias. Mostrei fragilidade, no momento em que você solitariamente mostrou e prova ao mundo toda a grandiosidade de sua força.
E, nas oportunidades em que a minha condição social ascendeu minimamente, eu lhe virei as costas e fui despejar o meu patrimônio em outras culturas e em outros grupos, em detrimento de toda a nobreza africana que eu deveria exaltar com você do meu lado e com a devoção que, agora começo a perceber, Rainha, deveria ser integralmente dedicada a você.
Contudo, começo a despertar de novo, minha Obá triunfal, em nome do resgate e da retomada dos meus passos em sua direção, em sua celebração e em busca do merecimento, ainda que tardio, de sua companhia e da sua existência; a única que, agora eu sei, me complementa, me dignifica e que me torna ainda maior do que eu mesmo acredito que posso ser.
Estou ciente de que tenho errado com você, Majestade de Ébano, mas vou beber da fonte da humildade para, desta vez, agir em busca dos acertos. Rebuscar, em algum lugar dentro de mim, o sentimento de presença e de proteção a você, que se esvaiu do meu peito e de minhas atitudes, desde que a primeira embarcação aviltante desembarcou por aqui.
Sei da minha porção de encargos sobre as mazelas que se abatem sobre a sua vida desde que aqui chegamos e sei o quanto a minha omissão e insensatez em todo esse cenário contribuíram e continuam contribuindo para a dor e as cicatrizes do seu corpo e da sua alma.
Mas quero me redimir, Rainha. E o meu êxito, caso eu consiga, só virá com um gesto de perdão seu (ainda que relutante) em minha direção.
Nem sei se mereço, se levarmos em conta que foram os meus próprios deslizes que provocaram o seu olhar amargurado e crítico sobre mim.
Mas quero e vou tentar. Só agora entendo que só posso ser um Homem na integridade se tiver você amada, feliz, segura, respeitada, valorizada, protegida e satisfeita do meu lado.
Não posso e não devo falar por todos os Homens pretos. Falo por mim e pelo o que o meu juízo crítico me determina neste momento.
Eu preferi caminhar do seu lado. Já me sinto feliz e de cabeça erguida com a minha decisão. Espero ser digno por, de novo, poder me aninhar em seus braços.
E voltar a ser o Homem por inteiro que eu era antes de atravessarmos o oceano. Da mesma forma que nos tiraram da África, torço pra você me aceitar de volta.
Pra eu nunca mais sair de você e você nunca mais sofrer por mim…
Fonte: Durval Arantes