quarta-feira, 1 de abril de 2015
Kiuá Nangetu! Um culto a resistência afro feminina
Artista Isabela do Lago evocou Mikaia (Iemanjá) na intervenção que abriu os caminhos do projeto artístico
Dando início as atividades do projeto “Kiuá Nangetu! Poéticas visuais de resistência negra” a artista Isabela do Lago aproveitou o ensejo do Dia Internacional da Mulher para executar sua intervenção. Nas areias da praia de São Francisco, em Mosqueiro, no dia 8 de março, ela convidou os transeuntes a vivenciar uma saudação à figura feminina, em sua proposta representada por Mikaia, senhora das águas, amplamente conhecida como Iemanjá.
Sob o título “Mikaia te espera na Kalunga”, Isabela evocou a divindade das águas e a ela concedeu como oferenda seu processo artístico. O caminho que levou a artista até aqui foi traçado ao longo de quase vinte anos de experimentação no campo das artes, tendo como foco principal a pintura. O resultado deriva de um longo processo de descolonização, em busca de uma identidade libertária que prestigie a produção e a vivência que contemple a negritude e a potencialidade da mulher.
“Inicialmente, eu precisava dar fim à série de pinturas ‘Mulheres Líquidas’, onde eu catava portas abandonadas na rua e pintava nessas portas imagens de mulheres, de entidades, de aparições-acontecimentos, mulheres sagradas e me autorretratava nisso, mas sentia a necessidade de romper com algumas coisas, como o uso da influência eurocêntrica na minha pintura. Era um desejo de morte, mas não desse formato de morte que a gente aprende que é uma morte-fim, eu queria uma morte-recomeço, eu precisava morrer! Daí veio a ideia da Kalunga, que muito embora o senso comum veja a Kalunga como morte, nós bantus, sabemos que é a infinitude, um lugar de ‘eterno retorno’”, conta a artista.
Nesta busca, Isabela encontrou a melhor representatividade em Mikaia. “Ao dividir esse pensamento com irmãos mais velhos, percebi que havia algo ainda maior, havia a simbologia matriarcal das deusas das águas profundas, Mikaia, Iemanjá, e nisso tudo, uma história trilhada com resistência afrofeminina, então minha pintura virou um grão de areia diante da grandeza desse mar, dessa Kalunga”, explica.
Influenciada pelo embalo da maré, Isabela e sua pintura se demoraram à beira das águas, deixando que o rio decidisse a hora de lavar seus cabelos e levar sua obra. “Depois de mergulhar, depois de pintar, me botei ali na beira e esperei que a maré enchesse até cobrir a minha cabeça e levar a pintura, mas as águas não a levaram, o objeto boiava indo e voltando, a imagem de Mikaia dançava para mim”. No registro da ação, Isabela contou com o apoio das artistas Luana Peixe e Evna Moura.
Sobre Isabela do Lago
Aos 37 anos, Isabela já tem quase duas décadas de atuação artística. Começou como bailarina, mas sempre pintou e desenhou. Nos últimos anos, sua produção passou a se relacionar mais estreitamente com sua religião, o candomblé. Expôs pelo “Nós de Aruanda”, em 2013 e 2014.
“De modo geral, minha produção tem a ver com minha retomada a religiosidade de matriz africana, não tenho uma organização cronológica certa, mas posso dizer que desde 2008 eu já vinha frequentando casas de santo no Marajó, e foi quando comecei a catar objetos de madeira na rua e retratar essas experiências, momento em que nasceu ‘Mulheres Líquidas’, em que eu já pensava o lugar da mulher afroamazônida, e já me questionava sobre a ausência desta mulher no circuito de arte, sem me dar conta de que nossa religiosidade não está separada da arte, nem da política, essa consciência veio com a vivência entre terreiro e galeria. Com o ‘Nós de Aruanda’ me atirei dentro do movimento negro, quando eu estava me perdendo e me achando entre pesquisadora, produtora, curadora e adepta... É difícil pensar em trajetória pontualmente quando se está enegrecendo, volto a responder daqui há 20 anos”, brinca.
Texto: Luiza Cabral
Saiba mais
“Kiuá Nangetu! Poéticas visuais de resistência negra” é um projeto de vivências poéticas, interferências midiáticas e intervenções urbanas com artistas do terreiro “Mansu Nangetu” e também de outros terreiros convidados, com obras e poéticas oriundas do cotidiano das práticas tradicionais dessa comunidade de terreiro afro-amazônico e seus parceiros. As ações iniciaram em março e se estendem até o mês de maio de 2015, culminando com o encerramento das comemorações dos 10 anos de criação do Instituto Nangetu.