Há quem diga que ele, o jovem guerreiro do branco e do fogo, seria uma qualidade, outra forma de expressão ou manifestação do orixá Xangô. Outros afirmam que Ayrá, mesmo salvaguardando características idênticas a Xangô, seria um orixá à parte, uma energia independente a serviço da justiça em prol da humanidade.
Os terreiros da Bahia, em destaque o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, cultuam Ayrá junto a Xangô, numa espécie de amálgama que poderia traduzir o primeiro como uma qualidade do segundo. Tanto assim que hoje, dia 29 de junho, dia de São Pedro dos católicos, os atabaques da Casa Branca (como também é chamado o Iyá Nassô) tocam e muitos dizem: “vou lá no Engenho Velho assistir Xangô Ayrá dançar. Tenho que ir de Branco”.
Sem necessidades de polêmicas em torno do que foi dito antes, mais importante é festejar, cultuar e preservar a presença viva desta entidade entre nós. A festa pública do 29 de junho da Casa Branca é para Ayrá Intile, o Ayrá que desafiou o rei Obatalá, tornando-se o seu filho e súdito posteriormente. A quem fale do Ayrá Osi, aquele que tem fundamento maior com Oxoguian, que veste branco como o rei de Ejibô, e como o jovem imponente Oxalá, é ferozmente guerreiro e justiceiro. Também, existiria o Ayrá Ibonã, o dono do fogo, amante da energia escarlate das labaredas, apesar de só se vestir de branco; o que adora a fogueira como seu irmão ou matriz espiritual Xangô.
A festa de gala do patrono dos terreiros nagôs
Candomblé é uma religião que imprime mistério e beleza. A galhardia traduz-se em cânticos, ritmos, vozes, danças, perfumes, indumentárias, adereços, gestos, corpos, sincronias, silêncio… Os deuses tocam a alma e o corpo da gente. Aliás, eles, os deuses, tomam posse da nossa consciência nos emprestando, por instantes, a grandeza mítica deles. Na Casa Branca a tradição desfia-se emoldurando ensinamentos seculares e adeptos e assistência reverenciam os motes civilizatórios africanos aqui chegados e ressignificados por muitos negros brasileiros. A religião cumpre o sentido de integrar familiares que praticam a fé nos orixás.
Ayrá dança no corpo de sacerdotisas como mãe Val e ebomy Márcia – outros Xangôs retroalimentam-nos do Fogo Sagrado. Todos se vestem de branco para celebrar Intile – o orixá patriarca do antigo Candomblé da Barroquinha, que deu origem à Casa Branca, e se chamava Ilê Axé Ayrá Intile, de acordo a pesquisadores como Vivaldo da Costa Lima e Renato da Silveira.
Esvoaçam-se ochês e tecidos brancos, manto sagrado do Senhor da Justiça, ao som do alujá, arrepiando a pele humana que revive os mitos que sustentam nossa memória ancestral.
A família Casa Branca é patrimônio em movimento do Candomblé no modelo jeje nagô, instituiu-se noEixo celeste, ou seja, entre as três casas mais destacadas quando o assunto é candomblé ketu-nagô. As outras duas são o Ilê Omi Axé Iyamassê, conhecido como Gantois, e o Ilê Axé Opô Afonjá.
Ayrá dança ao lado de Oxoguian, de Oyá, de Barú, Afonjá, Ogodô, Aganju, Ogum e carrega Oxolufã nas costas, transportando o pai que é o rei elementar na condição de orixá que Ayrá traduz: inspirado pelo funfun.
O atabaque toca para ressoar em nossa emoção. Os clarins, os foguetes, o cheiro da fogueira da noite anterior. Às vezes a mais pura alegria, outras vezes alguma tristeza e mais o sentimento de missão cumprida por realizar esta festa em nome do grande patrono.
Saudade
Neste “29 de junho” Ogum deixa a Casa Branca imersa na profunda saudade. Duas grandes damas se foram, duas iyalorixás que estavam entre as mais antigas daquele terreiro: mãe Antonieta e mãe Cutu, ambas filhas de Ogum e cumpridoras de uma vida em prol dos ensinamentos que sustentam a nossa fé e nossas práticas religiosas. Senhoras da negritude que perfila este lugar chamado Salvador.
Mãe Cutu era Iyá Dagan da Casa Branca e Iyalorixá do Ilê Axé Tony Solayo, enérgica liderança que muito ensinou sobre luta e resistência e lega uma herança espiritual inefável que pode ser sentida em sua filha adotiva Cristina e em todos que tiveram suas mãos e palavras de sacerdotisa. Nesta manhã de 29 de junho de 2015, o chão recebe o corpo sagrado desta mulher e o céu, nosso Orun, recebe o espírito da guardiã que carregava no ori um dos mais impressionantes “Ogum” que nossos terreiros conheceram.
Quem tem amor pelo Candomblé sabe da falta que aqui se desenha sem capacidade de exatidão.
No mais: Kawô Kabiesile!!!
Marlon Marcos é poeta, jornalista e antropólogo
Correio Nagô