BAHIA
Três formas de vender o quitute mais famoso e sagrado da Bahia entram em disputa pelo uso do termo
Alexandre Lyrio (alexandre.lyrio@redebahia.com.br)
Baianas tradicionais defendem uso do termo acarajé para quem segue ritual de preparação (Foto: Arisson Marinho)
Os sete bolinhos pulam do tabuleiro e marcam território no pequeno largo do Canela. A dona do espaço ali é Iansã. “A gente ‘arrêa’ sete acarajés para saudar os orixás e ter uma boa venda”. Distante dali, no Pau Miúdo, o mesmo perfume de dendê, mas o espaço é da divindade dos cristãos. “Consagro meu acarajé a Deus! Nunca me vesti de baiana”. Em outro ponto, na Pituba, não há qualquer sentido religioso no preparo da iguaria. Os bolinhos saem dentro de isopores. “O nosso acarajé é um acarajé comercial”.
Três formas de vender o quitute mais famoso e sagrado da Bahia. Na primeira, Maria Aparecida Santos, 46 anos, a Cida de Nanã, assume a forma tradicional, com trajes típicos de baiana e iniciação no candomblé, de onde se originou a iguaria no culto a Iansã. Na segunda, Edna Rodrigues de Lima, 55, evangélica que sustenta a família com seu “bolinho de Jesus” e uma banca com a inscrição “Deus é Fiel”. Na terceira, o empresário Ubiratan Sales, 55, criador e “exportador” para todo o Brasil do acarajé congelado.
Barraca do acarajé 'bolinho de Jesus'
(Foto: Alexandre Lyrio)
No meio desse tacho de dendê com tantas formas de lidar com o bolinho, surge uma disputa tensa e apimentada. Através da Associação das Baianas de Acarajé (Abam), com apoio do órgão federal que cuida do patrimônio histórico (Iphan), as baianas tradicionais resolveram partir para o ataque contra as formas modernas de produzir e vender o acarajé.
Contando com a criação de uma legislação que proteja as expressões culturais tradicionais, elas querem proibir o que chamam de uso indevido do nome “acarajé”.
A polêmica surge no momento em que se completa dez anos que o ofício de baiana de acarajé recebeu o Registro de Patrimônio Imaterial Brasileiro, ou seja, atravessou sua primeira década inscrito no Livro dos Saberes do Iphan. A inscrição — semelhante aos tombamentos, no caso de imóveis e monumentos — , ocorreu no dia 14 de junho de 2005.
“Em dez anos, tivemos poucas conquistas. Mas agora estamos decididas a acabar com distorções como o bolinho de Jesus e o acarajé congelado. Senão, não faz sentido ser patrimônio imaterial”, diz Rita Santos, presidente da Abam.
CONFIRA ESPECIAL DO CORREIO SOBRE O ACARAJÉ
Para as baianas tradicionais, existe uma forma correta de fazer e vender o bolinho. Em primeiro lugar, seria preciso respeitar-se a indumentária de baiana, que tem origem nas filhas e mães de santo das religiões de matriz africana.
Da mesma forma, os ingredientes utilizados na receita seriam necessariamente artesanais, feitos com feijão fradinho, sal, cebola, e só. No recheio, sem invenções, vai vatapá, pimenta, camarão, salada e, no máximo, caruru. “O caruru veio depois, mas pode entrar porque é comida de Xangô, ou seja, faz parte da culinária de santo”, explica Cida. São esses dois aspectos, receita e vestuário, que constam na Certidão do Registro do Ofício de Baiana de Acarajé.
Embate
Não chega a ser uma guerra entre Jesus, o dinheiro e a tradição. Mas, nesse embate, quem será que tem mais feijão fradinho no saco? A evangélica Edna diz que o acarajé é uma mercadoria como outra qualquer. “Eu poderia vender milho, pastel ou qualquer alimento. O acarajé é o meu trabalho”, defende ela, que comercializava o bolinho antes mesmo de se converter à Igreja Universal. “Vendo há 39 anos. Há 15, virei evangélica. Nunca usei roupa de baiana e não é agora que vou usar”, avisa.
Proprietário da fábrica de congelados que tem como marca Acarajé da Bahia, o empresário Ubiratan Sales diz que o que faz não é quebra de tradição. Pelo contrário, ele acredita que carrega o nome da Bahia para outros cantos, já que muita gente leva seus produtos para outras regiões do país e até para o exterior. Ao abastecer bares e restaurantes, Ubiratan afirma que respeita os locais em que já existem baianas.
Ubiratan desenvolveu a fórmula do acarajé congelado e vê seu produto ganhar o mundo
“A gente quer ir aonde a baiana não consegue chegar. Não tem essa de concorrência. Não fecho contrato com bares que têm baiana por perto”, argumenta. Além disso, há delicatessens que também comercializam o bolinho. A Perini, por exemplo, há alguns anos decidiu vender acarajé. Mas a empresa da famosa coxinha de catupiry preferiu não entrar na questão e não passou informações sobre a quantidade de bolinhos vendidos em suas lojas.
A Abam anuncia que vai entrar na Justiça contra empresários, restaurantes, delicatessens ou qualquer um que tenha se apropriado do bolinho para comercializá-lo de forma deturpada. O Iphan apoia a ação. “Tem gente que está ganhando muito dinheiro com o acarajé, uma herança cultural constituída com muito sacrifício e suor dessas mulheres negras”, afirma a antropóloga Maria Paula Adinolfi, do Iphan, que elaborou um trabalho que indica a necessidade de se proteger legalmente expressões culturais. Haja pimenta nessa discussão!