Páginas

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

'Que o Orixá toque na cabeça de todos para que se encontre uma solução', diz Mãe Stella


CORREIO esteve com ialorixá de 92 anos, ontem à noite; assista depoimento sobre retorno ao terreiro

O temporal que caiu sobre a cidade de Nazaré, no Reconcâvo baiano, ontem à noite, interrompeu o fornecimento de energia em parte da cidade. No centenário casarão de número 35, da Rua Ferreira Bastos, no bairro Batatan, velas iluminavam parcamente o seu salão principal. O portão pequeno da casa está emperrado pelo excesso de vegetação. O acesso é pelo portão da garagem que leva até a cozinha, onde uma enorme mesa de jantar está posta. Na sala principal, sentada numa cadeira de vime giratória, a maior sacerdotisa do candomblé em atividade no Brasil, Mãe Stella de Oxóssi, 92 anos, cochila serenamente.

Ao ser informada da chegada do CORREIO, ela movimenta os braços lentamente à procura dos visitantes. Os olhos caídos e fixados num único ponto delatam a visão comprometida. “Pegue na mão dela pra ela saber que o senhor está aqui”, diz uma senhora que se apresenta como cuidadora da ialorixá.
Na sala, seis pessoas se dividem em atenção à anciã que repousa na poltrona vestida numa bata branca e numa saia longa estampada de verde, as cores de Oxóssi, seu orixá.

“Ela está ótima, lúcida”, diz a psicóloga Graziela Domini Peixoto, companheira da religiosa e que está sendo acusada por membros da família da sacerdotisa e também por filhos de santo do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, de tê-la afastado do convívio familiar e religioso.

“Eu vim pra cá porque estava desencantada com o rumo que as coisas tomaram de um tempo para cá. Vim de livre e espontânea vontade, não sei porque estão fazendo Graziela de bode expiatório. Espero que Deus dê forças a ela para suportar o que estão nos fazendo”, diz, pausadamente, a ialorixá.

Dos presentes na casa, duas mulheres são apresentadas como cuidadoras da religiosa. Os outros são irmãos e/ou parentes de Graziela. As duas chegaram à cidade na sexta-feira (1º), depois de Mãe Stella recebeu alta do hospital onde estava internada.

Oscilando entre momentos de lucidez e de apagões de memória, a ialorixá conta que estava sendo muito pressionada pelos 71 membros do terreiro que não mais a escutavam. “Eles falam da hierarquia, mas depois de se reunirem comigo, tomavam outras decisões sem me consultar”, afirma.

Mãe Stella na casa da psicóloga Graziela, em Nazaré
(Foto: Betto Jr/CORREIO)

Publicidade

Mãe Stella diz que a decisão de sair de sua casa para passar uma temporada fora foi para ver se aplacava os ânimos por lá. “Eu não estava sendo respeitada. Preferi me ausentar para ver se as coisas se acomodam. Perdi o encantamento”, diz, para em seguida, ressaltar: “Não do meu trabalho, da espiritualidade, mas da condução das coisas dentro do Afonjá”.Diz que continua se sentindo responsável pelo terreiro e pelo seu trabalho espiritual. “Só não é admissível é que você queime as suas pestanas, perda o sono, faça suas obrigações e depois sempre encontra quem atrapalhe seus pensamentos”, diz.  

Sempre com os olhos semicerrados e um tom de voz baixa e muito pausado, a sacerdotisa, na maioria do tempo, se esforça para concluir o raciocínio. Nem sempre consegue. Muitas vezes suas frases são complementadas pela companheira que, cuidadosamente, a consulta antes de interceder. “Posso ajudá-la a concluir, mãe?”. Ela de pronto, responde: “Por favor, filha”. E Graziela o faz. Mãe Stella agradece carinhosamente. “Obrigada, minha filha”.

Aparente cumplicidade
A relação das duas, pelo menos aparentemente, é de muita cumplicidade. “Eles acham que estou interessada em tomar o lugar dela, mas isso não passa pela minha cabeça. Até porque, minha energia hoje é toda voltada para dar qualidade de vida a ela, foi por isso que viemos para cá, para termos paz”, diz Graziela, que tem o posto de Iya Egbe (mãe de todos) no Ilê Axé Opô Afonjá.

Para a sacerdotisa, toda essa situação que está vivendo é fruto de intrigas e de disputa interna de poder dentro do terreiro. “Eu não sei o porque de  tudo isso está acontecendo lá se eu não penso hora nenhuma em sucessão”, diz.

Sucessão, aliás, parece ser um assunto que não interessa as duas principais envolvidas neste imbróglio. Pelo menos por enquanto. “Eu não tenho tempo pra pensar nisso, o meu tempo eu dedico a cuidar de Mãe Stella para que não se entregue, para que continue firme com seu trabalho espiritual. Dedico meu tempo a mantê-la ativa. Seja redigindo um artigo com ela, seja produzindo um vídeo no canal do youtube,que fizemos para ocupá-la, tudo para manter sua cabeça em atividade”, diz Graziela.

Mãe Stella e Graziela
(Foto: Betto Jr/CORREIO)

Sobre acusações de que teria se apropriado da ialorixá, de bens do terreiro e até dos trabalhos religiosos, Graziela diz: “Tenho tudo documentado, já temos tudo resolvido desde 2015, tenho toda a documentação. Não vou perder tempo em desmentir nem provar nada, porque minha obrigação, minha missão hoje é cuidar dela e isso é o que estou fazendo”, afirma.

Durante todo o tempo que durou nossa conversa, Graziela acarinhava a ialorixá. “Vamos parar porque ela já está cansada”, disse. Mãe Stella ri timidamente e muda de assunto: "o senhor tem orixá?”, pergunta.

Respondo que sim, que sou de Ogum. “Obá! Então que Ogum lhe dê inspiração para que esse trabalho que o senhor está fazendo aqui nos ajude, a nós e ao senhor, a seguirmos numa linha reta”, disse.

O repórter Ronaldo Jacobina com Mãe Stella na noite de ontem (9)
(Foto: Betto Jr./CORREIO)

Com a expressão desolada reclama de fome. “Cadê meu café que ficaram de trazer?”, questiona. É a senha que temos de partir. Antes porém, arrisco a última pergunta: a senhora planeja voltar? Quando? Ela pensa, reflete e responde: “É o orixá, que vai dizer, que vai orientar. Então, que essa energia, porque o orixá é uma energia, toque na cabeça de todos nós para que encontremos o caminho certo”.