Sacerdotisa inspirava a doçura característica de Oxum, orixá a qual era consagrada.
Jaime Sodré
Para ser aplicado no uso da Lei 10.639/08.
“Os candomblés estão batendo/Foguetes explodem no ar/Em louvor a Menininha/Senhora Mãe e Rainha do Gantois/ Pelo seu aniversário/ De cinquentenário de iyalorixá/ Oh,oh,oh. Salve Mamãe Oxum/ Salve meu Pai Xangô/Cinquentenário de Batalha/Cinquentenário de fé/ Desde quando recebeu/ Os poderes de Maria dos Prazares Nazaré/ Sua vidência se alastrou Iyaô, Iyaô, Iyaô/Sacerdotisa de uma raça/Rainha de uma nação/Na luta em defesa dos descrentes/Ela sempre estendeu suas mãos/Hoje os candomblés estão batendo/Pra seu nome venerar/Iyami Modijubá/Salve o seu axé/seu candomblé/no alto do Gantois. .[1]
Ederaldo Gentil, inspirado compositor baiano, sintetizou, neste belíssimo samba, um acontecimento que mobilizou os diversos segmentos da Cidade de Salvador em 1972: o centenário de sacerdócio de Maria Escolástica Nazaré, a festejada Mãe Menininha do Gantois, a “Oxum mais bonita”, como afirmaram os versos de outro compositor famoso, Dorival Caymmi. Assim era Menininha, cantada em verso e prosa mas, acima de tudo, respeitada e reverenciada. Vamos nos valer de um depoimento efetivado por Mãe Menininha, junto ao etnólogo Valdeloir Rego, para nossas acertivas.
Nascida a 10 de fevereiro de 1894, na Rua da Assembléia, entre a Rua do Tira Chapéu e a Rua da Ajuda, no Centro Histórico de Salvador, Menininha teve como pais Joaquim e Maria da Glória Assunção. A sua família era dedicada ao culto dos Orixás, possuindo linhagem nobre, com raízes localizadas em Agbeokuta, na Nigéria, de onde vieram os pais de Maria Júlia da Conceição Nazaré, fundadora do Terreiro de “nação” Keto na Bahia, esse Terreiro que, da Barroquinha, zona central de Salvador, transferiu-se para um terreno, arrendado à família Gantois, localizado no bairro da Federação.[2]
Maria Escolástica, nascida no dia de Santa Escolástica, foi iniciada nos ritos africanos com a idade tenra de oito meses de nascida, oportunidade em que sua tia e antecessora, Pulcheria da Conceição Nazaré, conhecida como Kekerê, numa alusão à sua titulação hierárquica ocupando o cargo de Iya kekerê (Mãe pequena), vaticinou: “É filha de Oxum”, e a profecia concretizou-se. Oxum é a Deusa da beleza e do rio. Oxum, na Nigéria, é um Orixá muito popular e é cultuado em Salvador com extrema devoção.
A 18 de fevereiro de 1922, “a estrela mais linda do Alto do Gantois” inicia a sua trajetória religiosa, tendo recebido o poder místico diretamente de Oxóssi, Deus da Caça, rei de Keto, e de Xangô, Deus do Fogo e do Trovão, rei de Oyo, secular capital do povo yoruba.
Assumir a liderança do Ilê Iya Omin Axé Iyamassé, o Terreiro do Gantois, com pouca idade não se daria sem a natural polêmica. Além do mais, normalmente, o Axé, ou seja, o poder místico para exercer o cargo de Mãe-de-santo, é passado por outra Mãe-de-santo, qualificada para tal. Os ânimos foram apaziguados porque foram os Orixás que realizaram a escolha: “Os Orixás quiseram logo escolher quem ficaria tomando conta da Casa. E eles mesmos me deram posse, não foram pessoas não. Primeiro foi Oxóssi, depois Xangô, Oxum e Obaluaê. Eles me deram esse cargo de felicidade que estou ocupando até o dia em que Deus quiser,”[3] comentava.
Menininha sucedeu Maria Pulchéria, que havia falecido, um grande nome, merecedor de um estudo aprofundado.De um candomblé situado no Barroquinha, fundado pelos africanos Babá Assiká, Babá Adetá e Iya Nassô, nasceu o Ilê Iya Nassô, conhecido como candomblé do Engenho Velho, a famosa Casa Branca, e o Axé Iyamassé, titulação litúrgica do também famoso Candomblé de Menininha. Maria Júlia da Conceição Nazaré, que carregava orgulhosamente sobre sua cabeça o Orixá Bayani, irmão de Xangô, foi a fundadora deste respeitado templo da religiosidade afro-brasileira.
O nome de Maria Júlia, em nagô, era Omonikê; sua mãe chamava-se Akalá e o seu pai Okanrindê, nascidos em Akê, local onde fica o Palácio do rei de Agbeokuta, na Nigéria. Akalá tinha como orixá (dono de sua cabeça) Nanã Buruku, e Okanrindê possuia como orixá Aganju e ocupava, junto ao rei, um alto cargo intitulado Assolu Obá.
Reafirmando sua qualidade de estar sempre integrada aos fatos do seu tempo, Mãe Menininha abordava diversos aspectos que interagiam com seu cotidiano, o que deslumbrava sua visão de mundo e o contexto social circundante às suas atividades de sacerdotisa.
A respeito de seu carinhoso apelido, dizia: “Não sei quem pôs em mim o nome de Menininha… Minha infância não tem muito o que contar… Agora, dançava o candomblé com todos desde os seis anos”, o que revela uma precocidade bem vinda e um acúmulo de conhecimentos, revelados importantes em sua idade madura, no exercício do cargo de Iyalorixá.
Referindo-se aos tempos sombrios do violento preconceito e perseguições ao culto afro-brasileiro, assim expressava-se: “Eu tinha 22 anos no tempo da perseguição violenta da polícia aos candomblés, não era Orixá nem Mãe-de-santo. Foi uma época dura.” Identificando os algozes deste período brutal, e caracterizando sua atuação, dizia: “Um delegado que conhecemos muito, Dr. Pedro de Azevedo Gordilho, incomodou muitos pequenos candomblés.”
Mais tarde, recebe a convocação para o exercício de sua vida de liderança religiosa: “Quando os Orixás me escolheram, não recusei porque respeito muito a seita… Esta obrigação é árdua, não é uma coisa que se pegue com uma mão só… Isso é uma coisa de grande responsabilidade”. Dizia, consciente da grande missão que os Orixás lhe reservaram.
Contemporânea de figuras memoráveis do candomblé, Mãe Menininha respeitava-as, porém sabia da sua capacidade e conhecimentos para uma tarefa tão importante: “Conheci os grandes candomblés da Bahia… Conheci as grandes Mães-de-santo: a do Engenho Velho, Ursulina; a outra, Senhora Marcelina; dona Aninha do Axé Opo Afonjá… Apesar de ter sido escolhida pelos Orixás muito nova, nunca precisei pedir conselhos às outras Iyalorixás”, dizia com uma discreta ponta de orgulho, porém sem perder a humildade, sua maior característica.
Em reconhecimento à dedicação integral à sua missão sagrada, caracterizada pela solidariedade aos que a procuravam em busca de auxílio, pessoas de todos os níveis sociais eram atendidas em suas aflições e incertezas, seus amigos registraram os seus 50 anos de sacerdócio com uma placa de bronze, com a seguinte inscrição: “Nesta casa de Candomblé da Sociedade São Jorge do Gantois, Ilê Iya Omin Axé Iymassê, situado no Largo da Pulchéria, no Alto do Gantois, há 50 anos, Dona Maria Escolástica da Conceição Nazaré, Mãe–de-santo Menininha do Gantois, zela do alto do seu posto de Ialorixá, com exemplar dedicação e perene bondade, pelos orixás e pelo povo da Bahia”. Estava registrada em metal nobre, o bronze de Oxum, uma história de dedicação ao próximo, à tradição afro-brasileira e aos Orixás.
As atividades e responsabilidades decorrentes do cargo assumido alteraram, sobretudo, sua vida particular: “Meu marido, quando me conheceu, sabia que eu era do candomblé… A gente viveu em paz porque ele passou a gostar de Candomblé. Mas, quando fui feita Iyalorixá, passamos a morar separados. No meu terreiro, eu e minhas filhas. Marido não. Elas nasceram aqui mesmo”.
Mãe Menininha, como líder espiritual e pessoa sociável, conviveu com pessoas das mais diversas opções religiosas, num relacionamento respeitoso, no qual os pontos de vista sobre o mundo, observado de formas diferentes, não causavam nenhuma dificuldade para uma amizade sincera. O ex-Abade do Mosteiro de São Bento, Dom Timóteo Amoroso Anastácio, figura de destaque da vida social e religiosa e respeitadíssimo na comunidade baiana, expressou, por diversas vezes, sua admiração pela Iyalorixá, ressaltando a amizade de ambos, do que não pedia reservas e declarava publicamente, como exemplo de convivência a ser seguido no combate às intolerâncias.
Assim pensava, sobre o tema, Mãe Menininha: “Para mim, todas as religiões são verdadeiras, agora cada um na sua… Antigamente, as pessoas pensavam tantas coisas ruins do candomblé, mas ele é bom e não faz mal a ninguém. Os padres deveriam entender isso… África conhece o nosso Deus tanto quanto nós o conhecemos, com nome diferente, mas é o mesmo Deus com o nome de Olorum”, e acrescentava, numa postura sincrética, indiferente às posições contrárias a essa opinião: “Tenho um pouco da religião católica porque encontrei na minha família muita crença no catolicismo. Fiz minha primeira comunhão e ouvi missa.” [4]
Mãe Menininha não acreditava na possibilidade do candomblé desaparecer, perdendo suas características fundamentais, porém admitia que o mesmo sofrera transformações: “Antigamente, nós tínhamos mais fé nos Orixás, mais respeito também.” Sobre o perfil dos novos frequentadores do candomblé, observava: “O povo do candomblé é mais pobre, mas de uns tempos para cá muita gente rica tem aparecido… para mim, essa gente vem com mais curiosidade do que fé… Acho que as pessoas como eu, zeladoras do culto, devem ter o máximo de cuidado… Essas pessoas querem ver tudo, sem pertencer à seita.”
Sobre sua postura ética, assim expressava-se: “Eu aqui me meto em certos apuros porque só trabalho para a linha do bem” e diagnosticava: “sabe por que as pessoas têm mais problemas hoje? É a falta de Deus (Olorum).” Sua fama extrapolava a cidade de Salvador, na plenitude de sua dedicação e percorria o mundo. Muitos queriam vê-la, ouvi-la, e eram atendidos, ultimamente na medida de sua disponibilidade e estado de saúde. Porque ela fazia questão de atender, num grande esforço e dedicação.
No dia 13 de agosto de 1986, na plenitude de sua fé e perfeita intimidade com os Orixás, aos 92 anos de uma vida voltada à preservação e expansão do legado sagrado, herança deixada pelos nossos ancestrais africanos, Maria Escolástica Nazaré retorna ao Orum. Falece Mãe Menininha do Gantois e sobrevive sua obra. Segundo o antropólogo Júlio Braga, em função de viver permanentemente no “Lessé Orixá”, ou seja, aos pés ou na companhia da sua entidade protetora, a natureza da divindade passa a ser a natureza da pessoa, sendo que, para os adeptos das nações Keto, Angola, Jeje etc., Mãe Menininha era um Orixá que viveu no meio de nós. “Ela era um Orixá”, afirmava convicto o rei de Ijebu Ore, supremo sacerdote da religião na Nigéria, quando da sua visita à Iyalorixá, em julho de 1983.[5]
Legítima filha de Oxum e uma das sacerdotisas mais respeitadas do culto afro-brasileiro, essa era a opinião de intelectuais, políticos, artistas e o povo em geral, em especial dos adeptos do candomblé. No seu longo reinado de 64 anos à frente do Terreiro do Gantois, impôs respeito e admiração à religião dos Orixás: “Os integrantes do movimento negro, de caráter político, espalhado em todo Brasil, interpretam a fidelidade da Mãe Menininha à religião africana como um exemplo de resistência negra.”[6]
No dia 10 de fevereiro de 1991, em Salvador, na Bahia, local onde viveu e praticou sua fé, foi inaugurado o Memorial Menininha do Gantois, situado no Terreiro onde exerceu suas atividades, espaço que traduz, na exposição dos objetos que lhe pertenciam, as virtudes enquanto mulher e sacerdotisa.
Nesta oportunidade, assim expressou-se, entre outros ilustres, o escritor Jorge Amado: “Quando jogava ao búzios sobre a toalha rendada, os Orixás atendiam ao seu chamado, vinham das lonjuras para ela conversar em intimidade… Aqui continuas a zelar pelos Orixás e pelo povo da Bahia, Mãe Menininha do Gantois, aqui resplandece tua memória imortal.”
Caetano Veloso afirmara: “A memória de Mãe Menininha projeta-se para o futuro de um Brasil que há de merecer uma vida à altura dos deuses que vieram, pelo destino trágico do seu povo, habitar nossas florestas, nossas ruas, nossa língua e nossos sonhos… A memória de Mãe Menininha é a memória do que há de mais profundo e mais denso em nossa formação cultural.” E sintetiza Nizan Guanaes: “Nem todo o Brasil conhece candomblé, mas todo mundo conhece Mãe Menininha.”[7]
No dia 3 de fevereiro de 1994, a prefeita de Salvador, Lídice da Mata, inaugurou, no Alto do Gantois, a Praça Pulchéria, em homenagem ao centenário de nascimento de Mãe Menininha. Participaram artistas, intelectuais e o povo. Após o ato de inauguração, houve a bênção do padre Rubens, vigário da Paróquia do Divino Espírito Santo, à qual pertence a comunidade do Gantois, simbolizando a união de culturas religiosas tão ao gosto da filha de Oxum, batizada Maria Escolástica. O governador Antônio Carlos Magalhães compareceu às vésperas da inauguração, sendo recebido por integrantes do Terreiro, tendo à frente Mãe Cleuza, sucessora, filha espiritual e de sangue de Mãe Menininha.
Zeno Millet, filho de Mãe Cleuza, afirmava: “Isso era desejo do marido de Mãe Menininha (também já falecido) homenagear a sua antecessora, tia Pulchéia,” e acrescentava: “O aniversário de minha avó não contará com cerimônias sagradas e restritas. Todas as atividades até o dia 10 serão abertas ao público.”[8]
Como se observa, o Terreiro Ilê Iya Omin, Terreiro do Gantois, tem a sua continuidade, zelando pelos mesmos parâmetros traçados pelas ilustres antecessoras. Foi e continua sendo um poço de sabedoria e acervo importante das tradições afro-brasileiras e exercício de tradição e negritude, superando suas dificuldades ou conflitos inerentes a qualquer vivência coletiva, administrado sob inspiração dos orixás e capacidade de suas lideranças, cultuando as suas memórias, patrimônio que inspirou Caymmi a dizer, em sinceros versos, amparados por uma bela melodia; “Ai, minha Mãe, minha Mãe Menininha, Ai, minha Mãe, Menininha do Gantois… Olorum quem mandou essa filha de Oxum tomar conta da gente e de tudo cuidar, Olorum quem mandou ê ô, Ora yeyê ô.”
Jaime Sodré é doutorando em História Social,professor, poeta, compositor e religioso do candomblé.