de angelo
Um carioca de 33 anos dá nome ao único cinema – na verdade, uma sala com um projetor que exibe vídeos numa parede – de Kabadio, uma pequena vila de 3 mil habitantes no Sul do Senegal, considerada um centro místico em meio a uma região marcada por conflitos armados. Não é pouca coisa considerando-se que, há até poucos anos, os moradores de Kabadio não gostavam de receber forasteiros e tentavam se manter alheios a qualquer tipo de influência dos toubab, a designação no idioma mandingue para homem branco.
Mas o fotógrafo e cineasta Daniel Leite furou o cerco espiritual. Em duas visitas, uma em 2006 e outra em 2011, ele já passou dois meses no vilarejo para preparar um livro de fotos, uma exposição e um documentário. Seu maior objetivo, contudo, é ir além dos produtos materiais. Daniel quer mesmo ajudar Kabadio.
O Senegal tem uma geografia inusitada: o Norte e o Sul do país são separados por um outro país, a Gâmbia. O Sul é conhecido como Casamansa, região que sofre com conflitos armados há mais de 20 anos, a maioria deles promovidos pelo Movimento das Forças Democráticas de Casamansa (MFDC), uma guerrilha que reivindica sua separação do resto do Senegal.
Logo na primeira vez que foi a Kabadio, Daniel compreendeu os riscos e as dificuldades da Casamansa. Ele pegou um avião de Paris até a capital senegalesa de Dacar, atravessou as estradas do Norte, cruzou a Gâmbia, enfrentou um engarrafamento de seis horas até conseguir pegar um ferry boat para atravessar o Rio Casamansa e só então foi parar na região militarizada.
Sua primeira imagem do Sul do Senegal, ao acordar no meio de uma viagem que no total durou 16 horas, foi a de um caminhão cheio de militares armados bloqueando a estrada. Outro encontro comum, para quem trafega por Casamansa, é com os rebeldes do MFDC cobrando um “pedágio” dos forasteiros em nome de uma ajuda ao movimento separatista.
- Esse trajeto é uma passagem que foi me acostumando àquilo com que eu iria me deparar – diz o diretor. – Kabadio é um éden. Eles são pobres materialmente, mas não há miséria. A guerra não passa por lá por causa da proteção mística e do respeito político que os rebeldes têm pelo vilarejo. Com o projeto, eu quero revelar a realidade daquele povo, que é de onde nosso povo brasileiro vem. Aqueles rostos são os nossos. Eles são nossos ancestrais.
Daniel, que hoje trabalha como diretor de fotografia da TV Globo, começou a se aproximar de Kabadio durante os três anos em que estudou cinema na França. Ele ficou em Lyon de 2004 a 2007, pagando as contas com editoriais de moda para revistas ou com pequenos trabalhos em cinema e TV. Mas ele se sentia incomodado pelas dificuldades de um estrangeiro no país e por não conseguir realizar um trabalho autoral como gostaria.
- Um dia eu recebi um e-mail de uma francesa, estudante de mestrado, que queria fazer um trabalho sobre minhas fotos. Nós nos encontramos e ela me contou que passou três meses num projeto de cooperativa de pesca em Kabadio – conta. – Depois, conheci a associação humanitária francesa IEFR, que atua em Kabadio. Daí começamos a planejar a primeira viagem.
O financiamento inicial veio de um fundo da faculdade e de uma organização que banca projetos estudantis, a Crous. Já para a segunda viagem, realizada no início deste ano, a verba – que inclui passagem área, deslocamentos, equipamentos e a contratação de guias e assistentes – foi própria.
Com o material recolhido, que inclui vídeos, fotografias e peças, Daniel Leite agora prepara filme, livro e exposição sobre Kabadio, que devem ser lançados simultaneamente.
- A ideia é levar um pedaço daquele povo para fora dali – conclui.