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terça-feira, 16 de junho de 2015

Medicina da UFRGS forma a primeira cotista indígena Lucíola Inácio Belfort abre a série de três dias de reportagens sobre as ações afirmativas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Diploma ecoa na aldeia: Medicina da UFRGS forma a primeira cotista indígena

Lucíola Inácio Belfort abre a série de três dias de reportagens sobre as ações afirmativas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Diploma ecoa na aldeia: Medicina da UFRGS forma a primeira cotista indígena  Ricardo Duarte/Agencia RBS

Foto: Ricardo Duarte / Agencia RBS

Aline Custódio

aline.custodio@diariogaucho.com.br

Quando o nome de Lucíola Maria Inácio Belfort, 38 anos, foi anunciado nos microfones do Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para receber o diploma de médica, na noite de sexta-feira, uma nova parte da história da principal universidade federal do Estado estava sendo escrita.
Lucíola é a primeira indígena a se formar em Medicina na instituição e está entre os cotistas que ingressaram em 2008, os precursores no programa de ações afirmativas – nome dado às políticas em benefício a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no passado ou no presente.
Caingangue, Lucíola, ou Nivãn, nome pelo qual é chamada entre os de sua etnia, faz parte de uma parcela de estudantes universitários que, a partir daRESERVAde vagas para egressos de escolas públicas e autodeclarados pretos, pardos e indígenas, chegou ao ensino superior gratuito. Hoje, eles são cerca de 9 mil entre os 30,7 mil estudantes dos 93 cursos da UFRGS.
Até terça-feira, o Diário Gaúcho apresentará as mudanças que as ações afirmativas já estão causando nas diferentes esferas que circundam os cotistas: da sala de aula à vida.


Lucíola naRESERVA da Serrinha, no Norte do Estado
Foto: Tadeu Vilani
Às 19h14min desta sexta-feira, Lucíola recebeu seu diploma de médica. Usando brincos produzidos pela aldeia caingangue, ela vibrou muito enquanto recebia os aplausos da família. Uma noite para celebrar uma conquista tão batalhada.
Três semanas antes da formatura, o Diário Gaúcho acompanhou a ida de Lucíola à aldeia de Alto Alegre, em Ronda Alta, a 355km da Capital, para entregar os convites da formatura. Suas mãos tremeram ao ficar frente a frente com a mãe, Andila Inácio, 60 anos. O convite reafirmava a promessa feita a Andila quando ingressou no curso de Medicina, há sete anos.
— Tá aqui, a vitória é nossa — disse Lucíola.
Integrante da primeira turma de dez indígenas selecionados pela Ufrgs por meio de reserva especial de vagas, Lucíola havia se formado em Enfermagem, em 2001 – curso feito com bolsa de estudos numa universidade particular da região Norte do Estado. Durante sete anos, atuou como enfermeira em aldeias indígenas no Tocantins e no Rio Grande do Sul, sempre embalando o sonho de um dia cursar Medicina.
— Na época, eu trabalhava numa aldeia em Viamão quando minha mãe me avisou que as portas da Ufrgs seriam abertas aos indígenas. Era apenas uma vaga para 20 candidatos, e eu passei em primeiro lugar — recorda Lucíola.
Segunda filha mais velha de cinco irmãs, a futura médica integra uma família que pode se considerar diferenciada entre os caingangues: todos têm nível universitário.
Espalhados Brasil afora
A mãe, Andila Inácio, é professora aposentada e faz parte da primeira turma de indígenas bilíngues do Brasil. O pai, José Maria Baima Belfort, que vive em São Luis (MA), é funcionário aposentado da Funai. Entre as irmãs, Lucia Fernanda, 36 anos, é advogada e a primeira indígena com o título de mestra do Brasil. Suzana, 40 anos, é advogada e mestra em Direito, Sônia, 34 anos, é jornalista, e Luciana, 35 anos, é escritora. Lucia Fernanda mora na aldeia Alto Alegre. Sônia mora em São Félix do Araguaia (MT), Suzana, em Chapecó (SC), e Luciana, em Barra Velha (BA).
— Quando as minhas filhas se formaram em Direito, já foi uma vitória. A Lucíola tem uma responsabilidade muito grande, porque temos muita precariedade na área da saúde — justifica Andila.

Lucíola e mãe naRESERVA da Serrinha, no Norte do Estado
Foto: Tadeu Vilani

Resistência dos colegas
No início do curso, em 2008, por ser a única estudante em cota racial, já que naquele ano não entraram cotistas autodeclarados negros, Lucíola foi o alvo das manifestações dos colegas de curso. Viu seu nome em protestos nas redes sociais.
— Me enviavam mensagens dizendo que eu não deveria estar lá, que havia tirado a vaga de outra pessoa. Teve um ato na universidade para os colegas me entregarem o jaleco, e os professores e alguns veteranos se retiraram em protesto — recorda.
Quando a UFRGS criou o acesso aos indígenas, as vagas destinadas a eles não faziam parte das já existentes. E isso ocorre até hoje. As dez vagas anuais destinadas aos indígenas são escolhidas por uma comissão formada por caciques das aldeias gaúchas e representantes da universidade.
— Se eu tivesse 19 anos, teria desistido ali mesmo. Mas resisti até o fim, como minha mãe me ensinou — lembra.
"É uma porta que está se abrindo, e todas as propostas que me possibilitarem crescer, eu vou aceitar!"
Lucíola Maria Inácio Belfort

"Uma vitória que não é só dela, não é só da minha família, mas de todo um povo."
Andila Inácio

Lucíola, o marido e o filho Reserva da Serrinha, no Norte do Estado
Foto: Tadeu Vilani
Lucíola teria se formado em 2012, junto com a amiga caingangue e enfermeira Denize Marcolino, 24 anos, se tivesse concluído o curso no tempo mínimo exigido. Porém, prorrogou a conclusão por quase dois anos quando se descobriu grávida, no segundo ano de Medicina. Ela se apaixonou pelo então estudante de Odontologia Márcio Secco, hoje com 38 anos e de origem germânica, e com ele teve Kafâg, cinco anos, cujo nome é uma homenagem à araucária, árvore que representa o povo caingangue.
Para agilizar os estudos, Lucíola deixou o filho na aldeia, por um ano. Foi o segundo período mais difícil ao longo da universidade. Enquanto esteve entre os familiares da mãe, o menino era cuidado de perto pela amiga Miriam Joaquim,
30 anos, que ensinou palavras em caingangue para Kafâg.
— Uma índia jamais abandona o seu filho com alguém, nem em creche. Mas foi necessário, porque eu precisava estudar 24 horas. Para Kafâg, foi importante conhecer a nossa cultura. Hoje, ele se sente mais feliz na aldeia do que na cidade — conta Lucíola, enquanto observa o menino loiro correndo entre os primos na aldeia de Alto Alegre.
Apaixonado pela cultura caingangue, Márcio trabalhou durante seis meses no posto de saúde de Alto Alegre. Hoje, os três moram no Bairro São Geraldo, em Porto Alegre. Mas é o marido quem mais apoia Lucíola no retorno à aldeia, depois que ela receber o diploma.
"Nós queríamos que os nossos filhos estudassem, fizessem ensino superior. É um pleito de, mais ou menos, 30 anos."
Cacique Antônio Ming

"A política de ações afirmativas não é para reduzir o racismo, mas para diminuir as desigualdades racial e social ainda existentes no Brasil."
Edilson Nabarro, vice-coordenador da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas da UFRGS

Lucíola, no último dia de aula, atendendo paciente
Foto: Tadeu Vilani
No último dia como estudante, Lucíola despediu-se da UBS Santa Cecília, na Capital, onde fez o estágio final do curso, atendendo ao pequeno Matheus Busnelo Keidann, cinco anos, filho da zeladora Marta Eliane Burnelo Keidann, 45 anos. Descontraída, Lucíola tornou a consulta mais leve ao brincar com Matheus.
—Ela foi muito atenciosa e o examinou por completo. Dificilmente, o médico faz isso. Ela vai ser uma grande profissional — afirma Marta, desejando boa sorte à futura médica.
E o futuro?
No retorno à aldeia, Lucíola fez questão de entregar um convite ao cacique Antônio Ming. E dele veio a proposta para ela trabalhar no posto de saúde de Alto Alegre, junto com o marido:
— É a primeira caingangue se formando em Medicina no Rio Grande do Sul. Dou meus parabéns à Lucíola, pois venceu.
Antes do regresso definitivo às origens, porém, Lucíola pretende atuar como clínica e fazer uma especialização em Medicina da Família. Mas é uma questão de tempo:
— Penso em voltar para as aldeias, independentemente de qual seja. Não vou salvar o mundo, não vou salvar todos todos os índios, mas é uma porta que se abre.
Os indígenas e as cotas
* Desde 2008, 70 vagas foram oferecidas aos indígenas. Dessas, 65 foram ocupadas – nove por estudantes da etnia guarani e 54, da etnia caingangue.
* 45 estudantes indígenas estão regularmente matriculados.
* Três alunos indígenas foram diplomados, em Direito e Enfermagem.
* 15 alunos solicitaram o desligamento do curso e três abandonaram a universidade.
Fonte: Relatório anual 2013/2014 da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas

Lucíola na noite da formatura
Foto: Ricardo Duarte

ENTENDA AS AÇÕES AFIRMATIVAS
* Das vagas oferecidas na Ufrgs, 40% são reservadas às ações afirmativas (políticas em benefício a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no passado ou no presente).
* São vagas destinadas a alunos de escolas públicas. É levado em consideração se o aluno declara-se preto, pardo ou indígena e a sua condição financeira.
* Todo candidato inscrito no vestibular concorre por acesso universal. O candidato que desejar concorrer também às vagas destinadas ao sistema de ingresso porRESERVA de vagas assinala a opção no ato da inscrição do vestibular.
* Se ele não atingir a nota para conquistar a vaga via universal, aí, caso inscrito, começa a ter os critérios avaliados para ingressar como cotista.
Na próxima segunda-feira, confira a segunda parte da reportagem: os desafios dos cotistas depois da formatura.