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terça-feira, 26 de abril de 2011

Reflexões por uma Pedagogia Anti Racista

Pedagogia Anti Racista

E se eu não tivesse tido vergonha do amigo preto de meu irmão e do bairro que morava sua família?
E se eu soubesse alguma coisa sobre sabedoria dos griôs na minha infância?
E se ao invés de colecionar revistas com horóscopos e cartazes de rapazes brancos das novelas eu tivesse conhecido Nelson Mandela e acompanhado ele tomar o poder na África do Sul?
E se minha memória ficasse marcada por ter sido contemporânea do Massacre em Ruanda?
E se ao invés de José de Alencar eu tivesse lido Malcon X? Ou se pelo menos me ensinassem que Machado de Assis e Lima Barreto eram afro descendentes?
E se minha professora tivesse tido a capacidade de entender Monteiro Lobato como racista e como consequência de um projeto eugenista?
E se eu tivesse aprendido a ver beleza nos rapazes negros quando eu ainda era adolescente?
E se eu  não tivesse escolhido as meninas mais brancas, mais inteligentes com os cabelos mais lisos para fazer parte do meu grupo?
E se eu tivesse sido motivada a valorizar Fela Kuti e não Madona nas atividades de educação artística?
E se meus professores tivessem me apresentado Nzinga, Clementina de Jesus, Dandara, Acotirene, Ângela Davis?
E se eu não tivesse aprendido que o candomblé era uma religião inferior?
E se minha mãe tivesse conhecido um pouco dessa outra história preta, qual o nome eu teria?
Olho para minha infância e minha adolescência e fico por vezes muitos dias me perguntando coisas como essa, de como teria sido o meu mundo, as minhas conquistas e o meu saber se eu não tivesse encontrado apenas depois dos 22 anos a perspectiva afro brasileira de se entender a história, o modelo, a dominação...
Sinto um verdadeiro incomodo por não ter tido o direito a esses conteúdos, pela educação nunca ter me permitido esse acesso em nenhuma área do conhecimento, nem a mim, nem aos meus pais, nem a nenhum dos meus ancestrais. A sensação é a de como se eu fosse analfabeta e só na idade adulta tivesse tido a real oportunidade de dominar a leitura e a escrita...
A sistema de ensino me prejudicou muito, ou pelo menos me atrasou... parte do que me ensinaram, foi inútil e deu trabalho desconstruir... se é que eu já fiz o trabalho todo...
Tive que sair da Faculdade pra começar a aprender... e até hoje me indigna não ter estudado teóricos africanos, não ter conseguido transpor o conceito do racismo do papel para lê-lo e combatê-lo desde então, tudo tão fragmentado e superficial, inebriado com o nome de Ensino Superior.
A lei 10.639 de 2003 e 11 645 de 2008, que torna obrigatório Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena, tem na verdade em seu ínterim, a esperança de que nenhuma pessoa seja educada a partir da alienação racial com que eu fui. Essa lei visa garantir que a infância e a adolescência deste país, de maioria afro descendente, em especial quando se trata de escolas públicas, possam ter o direito de, enquanto pretos e pretas, se entenderem como gente, de se reconhecerem como belos e de se terem seus heróis; e enquanto não negros de se respeitarem, de serem sensibilizados numa perspectiva anti racista.
Cumprir essa lei não é tarefa fácil e vai demorar ainda algumas gerações, principalmente por que essa lei fica especialmente sob o domínio de professores que , para além de toda a complexidade de sua carreira e de como o Estado lhe trata, são pessoas que nunca foram formadas para propagar uma pedagogia anti racista, pelo contrário, muitos trazem para o assunto a perspectiva de sua educação familiar ou religiosa, e rema na contra mão desses avanços, outros porém, trazem uma formação diferenciada, têm sensibilidade e conhecimento mais ampliado da história, porém, a estrutura institucional escolar nem sempre permite, seja se tratando da ideologia institucional escolar, seja da maioria das ideologias dos profissionais da educação.
Fato é: a lei é revolucionária, mas precisa-se comprometer as estruturas, as conjunturas, para a revolução de fato, ser palpável.
Nessa caminhada dos movimentos organizados de negros e negras, o trabalho apenas começa. É preciso sensibilizar os pais e mães a perguntar nas reuniões escolares: e a nossa lei 10 639 e 11 645? o que tem acontecido nessa escola? O que tem mudado? Qual a formação que os professores têm tido?
È preciso cobrar o Ministério Público a cobrar das secretarias de educação... É preciso cobrar das Secretarias de Educação que não se entenda essa lei como um projeto de uma unidade ou de um ano letivo...
É preciso pensar do ponto de vista curricular, política e pedagogicamente...
Nós, do movimento social, somos os que ainda temos que batalhar para a lei não se limitar a um papel, ou a um projeto folclorizado do mês de novembro e ações conteudistas por si só.
A Casa do Boneco encontrou pela primeira vez numa instituição a sensibilidade coletiva para a mudança: O IF Baiano Campus Uruçuca. Ali, direção, coordenação e professores abraçaram o desafio de construírem uma pedagogia anti racista, com o apoio da Reitoria. Pela primeira vez temos esperanças de que uma revolução de perspectiva ideológica pode-se processar no sistema educacional de uma micro realidade que é o Instituto.
De forma pioneira, uma instituição de ensino coloca um movimento negro na perspectiva de importância e de construção colaborativa que se necessita.
Verdade que a caminhada só se inicia, e como já dizia uma professora, “e ela não tem fim”, e que muitas experiencias, positivas e negativas estarão nessa caminhada, mas é tão grandioso esse começo, que não poderia fugir o registro, a emoção e o aplauso que o sorriso negro expressa quando uma batalha dessa grandiosidade, se inicia com tanta colaboração e interesse.
Olorum nos fortaleça em nossos sonhos!
Sayonara Malta, Historiadora e Militante
Casa do Boneco de Itacaré, Outono Negro