jun 21st, 2011 by Pedro.
No dia 16 de junho, foi realizado o Seminário Internacional sobre o Estado Laico e a Liberdade Religiosa, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça com a iniciativa do Ministro Ives Gandra Filho, conselheiro de justiça e ministro do Tribunal Superior do Trabalho. O seminário mereceu notas na imprensa, na Record e noJornal Nacional.
Não me consta que algo semelhante tenha sido feito no Brasil. Não raro a laicidade do Estado é debatido em lugares como universidades, porém, até onde sei, é a primeira vez que um órgão da magistratura nacional dedica um seminário público e gratuito a respeito, com a presença de ministros de estado, autoridades do Judiciário e juristas de peso, como o professor Jorge Miranda, constitucionalista renomado, catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Magistrado jubilado da Corte Constitucional Portuguesa, equivalente ao STF brasileiro. Aliás, foi homenageado e referenciado como “pai” da atual constituição portuguesa.
Entre as autoridades presentes na abertura, estavam o Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, César Peluso, e a Ministra Irini Lopes, da Secretaria Especial de Política para as Mulheres.
Diferença entre laicidade e laicismo é consenso
Foi do prof. Jorge Miranda, inclusive, a exposição mais didática, abrangente e aprofundada sobre o que é o Estado laico, explanada em seu painel sobre religião e poder político.
Para começar, Miranda classificou em três grupos as relações entre Estado e religião: 1) quando ambos se identificam e confundem, com formato deteocracia ou cesaropapismo; 2) quando se relacionam separadamente, seja em parcial união — com clericalismo ou regalismo – seja em separação total — com o Estado laico; e 3) quando há oposição entre ambos, nas formas doEstado laicista e do Estado ateu, com perseguição aberta ou velada à religião.
Podemos tratar dos os detalhes sobre esses termos em outra ocasião. O ponto principal de Miranda, entretanto, foi distinguir o Estado laico do Estado laicista. Enquanto o primeiro é uma separação total entre a instituição Estado e os credos e instituições religiosas, preservando o direito de expressão pública da fé, o segundo é uma restrição, pelo Estado, da liberdade religiosa do cidadão apenas ao âmbito privado, vedando sua expressão no espaço público, seja ele político, físico ou ideológico.
Essa diferenciação foi repetida praticamente por todos os expositores (mesmo que ocasionalmente com terminologia distinta), inclusive pelo prof. Daniel Sarmento, Procurador Regional da República e autor da ação contra a decisão da CNJ em manter os crucifixos nos tribunais. Também não é uma posição muito diferente da que temos comentado neste blog.
Razão pública e relativismo
O prof. Kent Greenawalt, da Columbia Law School, e o prof. Daniel Sarmento trataram, de uma forma ou de outra, sobre o papel da religiosidade na política, tanto de maneira difusa (proteção ao sentimento religioso e à laicidade do Estado) quanto particular (na ação dos agentes públicos, principalmente governantes e juízes, em respeito às suas próprias crenças religiosas).
O consenso tendeu para um ponto: a religião só pode influenciar nas decisões políticas se ela invocar alguma razão pública, que mobilize o interesse político na direção de algo entendido como benéfico para a sociedade. Isso não é excluir a religião do debate, mas uma tentativa de evitar a vitória de posições personalistas ou de grupos pequenos com base na religião, cujos pressupostos nem todos os membros da sociedade aceitam.
Sarmento vai além: ele diz que as religiões devem “traduzir” seu posicionamento em algo inteligível para quem não compartilha da fé. Doutrinas religiosas a serem levadas ao jogo político devem ser apresentadas em termos de bem comum, princípios éticos, plataformas e regras com forma argumentativa, passíveis de discussão e refutação, e não como doutrinas e dogmas. Isso é imprescindível para o funcionamento da democracia argumentativa, na qual todas as opiniões devem ser consideradas válidas e confrontadas por meio do debate, de forma a diminuir as distorções causadas pela representatividade (sobre ou subrepresentação).
Esse foco na razão pública e na “tradução” do pensamento religioso tem, para mim, um resultado dúbio. Por um lado, acho imprescindível que os credos se expressem em termos lógicos para tornarem seus posicionamentos inteligíveis aos não-crentes. Mais do que isso: é exatamente por uma noção de razão pública, pelo senso de bem maior para a comunidade, que os grupos religiosos defendem agendas politicamente, e não para “evangelizar” ou “converter”. Um religioso não defende, por exemplo, o casamento somente entre um homem e a mulher porque está escrito na Bíblia (embora haja quem embaraçosamente diga isso em público, ajudando a reforçar estereótipos), mas porque acredita que a família natural deve ser preservada pela sociedade para seu próprio bem futuro.
Por outro lado, a “tradução” pode facilitar a relativização de posições religiosas, normalmente morais, como se fossem passíveis de um meio-termo. E não acredito que a moral, em si, permita um meio-termo, ou simplesmente não é moral. Isso enfraquece o discurso religioso.
Outras exposições, sobre a concordata entre Brasil e Santa Sé, o histórico da laicidade do Estado na visão da Igreja e o ensino religioso, foram verdadeiras aulas de relações internacionais, história e eclesiologia. Tratarei desses assuntos em posts separados.
Apanhado geral
O seminário foi importantíssimo para tornar terminantemente clara a definição dos conceitos de laicidade, e pelo no imperativo à neutralidade e à democracia envolvendo todos, religiosos ou não. E alcançou isso trazendo consenso entre pessoas esclarecidas com opiniões opostas, um feito talvez inédito.
Houve quem reclamasse (em particular, claro) que o seminário não passou de autopromoção da Igreja Católica. Isso é um total contrassenso. No Brasil, a Igreja Católica é a instituição mais atacada pelo o argumento da laicidade do Estado nos mais diversos temas. Como ator mais exposto, é o que mais deveria ser ouvido no debate sobre laicidade do Estado. Porém, quem não gosta da Igreja vai abusar da laicidade do Estado sempre contra ela: para vetá-la da expressão pública e para impedi-la de argumentar contra o veto. Se laicidade é neutralidade, o que essas pessoas invocam não é laicidade.
Por isso, senti falta da participação de entes como, por exemplo, as Católicas pelo Direito de Decidir e a ABGLT (citadas aqui e aqui neste blog) que costumam usar da laicidade do Estado para impedir a expressão política da Igreja Católica ou de qualquer credo nas questões que lhes interessam. Gostaria de ver o que teriam a dizer sobre suas posições, uma vez que revelaram-se claramente opostas aos conceitos de laicidade e democracia que foram debatidos no seminário.